Ali vivia a criatura abençoada pelo Senhor com o sinal dos que
não têm fome. Constantemente boquiabertos se mostravam os habitantes da
aldeia, jovens e velhos, nus e vestidos - as mulheres, um pouco à
distância, mas também interrogativas - homens e meninos, sem nenhum
rubor, colados aos nossos tornozelos, enquanto seus olhos fixavam o
espetáculo sem precedentes.
"Uma figura baixa logo surgiu no vão da porta - Gíri Bala!
Envolvia-se num traje de seda cor-de-ouro baço; segundo o costume
tipicamente hindu, ela avançou, espiando-nos com modéstia e hesitação
por sob a dobra superior do manto de swadéshi que lhe cobria a cabeça.
Seus olhos reluziam como brasas queimando sem chama, por entre as
Sombras da mantilha; cativou-nos seu rosto de benevolência e
auto-rea-lização, livre da mácula do apego terrestre.
"Ela se aproximou mansamente e concordou em silêncio com o nosso
pedido de fotografá-la e filmá-la várias vezes com nossas câmaras
.
Paciente e tímida, ela suportou nossas técnicas fotográficas, de ajuste
e posição e de arranjos de luz. Por fim, tínhamos guardado, 1)ara a
posteridade, muitas imagens da única mulher no mundo que se sabe ter
vivido sem comer nem beber por mais de cinqüenta anos (Teresa Neumann,
naturalmente, jejua desde 1923). Muito maternal era a expressão de Gíri
Bala, ao permanecer diante de nós, inteiramente coberta por sua
vestimenta solta e flutuante, sem que nada se visse de seu corpo a não
ser a face de olhos baixos, as mãos e os pequenos pés. Um rosto de paz
invulgar e de inocente equilíbrio - lábios largos, trêmulos, infantis,
um nariz feminino, olhos estreitos e reluzentes, e um sorriso
pensativo."
Compartilhei das impressões do sr. Wright sobre Gíri Bala; a
espiritualidade a envolvia toda, semelhante ao seu véu de suave brilho.
Ela fez o gesto de prônam diante de mim, conforme a tradicional
saudação de uma dona de casa a um monge. Seu encanto simples e sorriso
quieto deram-nos uma acolhida superior à oratória melíflua; es-quecida
ficou a nossa difícil viagem sob a poeira.
A diminuta santa sentou-se de pernas cruzadas na varanda. Embora
demonstrasse os sinais da idade, não tinha aspecto macilento; a pele
cor-de-oliva conservava sua tradicional tonalidade pura e saudável.
- Mãe - disse eu, em bengali - durante mais de vinte e cinco anos
pensei com ansiedade nesta verdadeira peregrinação! Quem me referiu sua
vida sagrada foi Sthiti Lal Nundy Babú.
Ela acenou com a cabeça, em sinal de reconhecimento: - Sim, bom vizinho em Nawabgani.
- Atravessei o oceano e estive longe durante muitos anos, mas
nunca esqueci meu plano de vê-la, um dia. O drama sublime que a senhora
está representando tão imperceptivelmente deveria ser proclamado a um
mundo que há longo tempo esqueceu o divino alimento interior.
Por um instante, a santa ergueu os olhos, sorrindo com sereno interesse.
- Babá (Venerado Pai) sabe o que é melhor - respondeu ela, humildemente.
Fiquei contente por ela não ter recebido minha sugestão como uma
ofensa; ninguém jamais como os iogues e as ióguines reagirão à idéia de
publicidade. Em regra, eles a evitam, desejosos de prosseguir em
silêncio a profunda investigação da alma. Uma autorização interna,
quando chega a hora, lhes permite exibir suas vidas abertamente, em
benefício das mentes que buscam a verdade.
- Mãe - continuei - perdoe-me, então, por sobrecarregá-la com
tantas perguntas. Por favor, responda somente às que lhe agradarem;
compreenderei seu silêncio também.
Ela estendeu as mãos em gesto gracioso: - Responderei com prazer,
na medida em que uma pessoa, insignificante como eu, possa dar
respostas satisfatórias.
- Oh, não, insignificante não! - protestei sinceramente. - A senhora é uma grande alma.
- Sou a humilde serva de todos - E fantasticamente, ela acrescentou: - Gosto de cozinhar e de alimentar os outros.
"Passatempo estranho - pensei eu - para uma santa que não come! "
- Que seus próprios lábios me digam, Mãe: é verdade que vive sem nenhum alimento?
- É verdade. - Ela se manteve silenciosa por alguns instantes;
seu próximo comentário indicava que estivera lutando com o cálculo
mental. - Desde a idade de doze anos e quatro meses até minha idade
atual de sessenta e oito (um período superior a cinqüenta anos), -não
ingeri alimento nem tomei líquidos.
- Não sente a tentação de comer?
- Se eu sentisse necessidade de alimentos, teria de comer. - Ela
afirmou com simplicidade e, não obstante, com uma classe régia, esta
verdade axiomática conhecida num mundo que gira em torno de três
refeições por dia!
- Mas a senhora se alimenta de alguma coisa! - Havia em meu tom de voz uma objeção.
Entendendo imediatamente, ela sorriu: - Sem dúvida!
- Sua nutrição provém das energias sutis do ar e da luz sol e do poder cósmico que reabastece seu corpo através do bulbo raquiano.
- Babá sabe. - Ela novamente concordou, em sua maneira de ser suave e sem ênfase.
- Mãe, por favor, conte-me algo de sua vida, de seus primeiros
anos. Ela tem profundo interesse para todos na índia e até para nossos
irmãos e irmãs além dos mares.
Gíri Bala pôs de lado sua habitual reserva, mitigando a tensão com uma conversa informal.
- Assim seja. - Sua voz era baixa e firme. - Nasci nesta região
-de florestas. Minha infância nada teve de excepcional, a não ser a
aberração de um apetite insaciável. Meu noivado ocorreu aos nove anos de
idade. "Filha", advertia minha mãe freqüentemente, "trate de controlar
sua voracidade. Quando chegar o tempo de viver entre estranhos, em casa
da família de seu marido, que pensarão de você, quando a virem comendo
sem parar? "
"A calamidade que ela previra, aconteceu. Eu tinha apenas doze
anos quando me reuni à família de meu marido em Nawabganj. De manhã, à
tarde, e à noite, minha sogra me humilhava para que eu sentisse vegonha
de meus hábitos de gula. Suas repreensões foram, porém, uma bênção
disfarçada; despertaram minhas tendências espirituais adormecidas. Certa
manhã, ela foi impiedosa em sua tarefa de ridicularizar-me.
"- Nunca mais comerei enquanto viver - disse eu, sentindo a ferroada até a medula - e lhe darei provas em breve.
"- Ah, é? - Minha sogra riu-se com menosprezo. -- Como pode viver sem alimentação quem não pode viver sem superalimentação?
"Este comentário era irrefutável! Contudo, uma resolução de aço
apoderara-se de meu coração. Em lugar solitário, procurei meu Pai
Celestial. Rezei incessantemente: Senhor, eu Te suplico, envia-me um
guru, alguém que possa ensinar-me a viver de Tua luz e não de
alimentos.
"Um êxtase me acometeu. Sob um encantamento beatífico, parti para
o ghat de Nawabganj, no Ganges. Em caminho, encontrei o sacerdote da
família de meu marido.
Venerável senhor - disse eu confiantemente - diga-me, por favor, como poderei viver sem comida.
"Ele demorou os olhos em mim, sem responder. E afinal falou,
consoladoramente: - Filha, venha ao templo hoje à noite. Oficiarei uma
cerimônia védica especialmente em sua intenção.
"Esta resposta indefinida não era a que eu procurava; continuei a
andar em direção ao ghat. O sol matutino perfurava as águas;
purifiquei-me, como se fosse para uma iniciação sagrada. Ao me afastar
da margem do rio, de roupa molhada sobre o corpo, à luz clara do dia, vi
meu mestre materializar-se diante de mim!
"- Minha querida pequena - disse ele com voz de amorosa compaixão
- sou o guru enviado por Deus para satisfazer sua prece urgente. Ele
ficou profundamente comovido com a essência invulgar dessa prece! De
hoje em diante, você viverá da luz astral; os átomos de seu corpo se
reabastecerão de carga na corrente infinita."
Gíri Bala silenciou. Tomei o lápis e o bloco de apontamentos do
sr. Wright e traduzi para o inglês alguns trechos de minha conversa a
fim de informá-lo.
A santa reatou a conversação, com voz suave, quase inaudível. "O
ghat achava-se deserto, mas meu guru lançou em torno de nós uma aura de
luz protetora, para que nenhum banhista vagando por ali nos viesse
molestar. Ele me iniciou numa técnica de kria que liberta o corpo cia
dependência para com a grosseira alimentação dos mortais. A técnica
inclui o uso de certo mantra
e um exercício respiratório mais difícil que os realizáveis por uma
pessoa comum. Não implica magia nem drogas medicinais; nada além de
kria.
Imitando o repórter de um jornal norte-americano que, sem
perceber, me ensinou sua arte, interroguei Gíri Bala sobre muitos
assuntos que, pensei, seriam de interesse para o mundo. Ela me deu,
fracionadamente, as seguintes informações:
Nunca tive filhos; há muitos anos atrás, fiquei viúva. Durmo
pouquíssimo, já que sono e vigília são iguais para mim. Medito à noite,
cumprindo meus deveres domésticos durante o dia. Sinto ligeiramente a
mudança de clima de uma estação para a outra. Nunca estive doente nem
sofri jamais qualquer doença. Sinto apenas uma leve dor quando sou
ferida acidentalmente. Não tenho excreções físi-cas. Posso controlar as
batidas de meu coração e minha respiração. Contemplo freqüentemente em
visões, meu guru e outras grandes almas.
- Mãe - perguntei-lhe - por que não ensina a outros o método de viver sem alimento?
Minhas ambiciosas esperanças foram destruídas no mesmo instante, embora eu pensasse nos milhões de famintos que há no mundo.
- Não - ela abanou a cabeça. - Recebi ordens estritas de meu guru
para não divulgar o segredo. Ele não pretende intrometer-se rio drama
divino da criação. Os agricultores não me agradeceriam se eu ensinasse
muita gente a viver sem alimentos! As frutas deliciosas Jazeriam no
solo, sem mais utilidade. Parece que a miséria, a inanição, a doença
são chicotes de nosso carma que nos impelem, por fim, a buscar o
verdadeiro significado da vida.
- Mãe - disse eu, lentamente - que adianta então, que utilidade há nisto, em ter sido eleita para viver sem alimentar,
- Provar que o homem é Espírito. - Seu rosto iluminou-se de
sabedoria. Demonstrar que, pelo adiantamento na senda de Deus, o homem
pode gradualmente aprender a viver da Luz Eterna e não da comida
.
A santa entrou em profundo estado meditativo. Seu olhar
dirigiu-se para cima: a suave profundeza de seus olhos tornou-se
inexpressiva. Ela exalou um certo suspiro, prelúdio do transe extático,
isento de respiração. Por algum tempo, voara ao reino onde não existem
perguntas, ao paraíso da beatitude interior!
A escuridão tropical descera. A luz de uma lâmpada de querosene
bruxuleava com intermitência sobre as cabeças de muitos camponeses que
se haviam sentado de pernas cruzadas, silenciosamente, nas sombras.
Coriscantes vaga-lumes e remotas lâmpadas a óleo das choças teciam
rútilos e caprichosos arabescos na noite de veludo. Soava o momento
doloroso da partida; uma jornada lenta, tediosa, era a perspectiva do
pequeno grupo.
- Gíri Bala - disse eu quando a santa abriu os olhos - dê-me, por favor, uma lembrança: uma pequena tira de um de seus sarís.
Logo ela voltou com um sarí de seda de Benares, oferecendo-a com a mão, enquanto se prostrava repentinamente no solo.
- Mãe - disse eu com reverência - permita-me, com mais razão, tocar os seus pés sagrados!
Fonte terado do Autobiografia de Um Yogue.
Namastê, Gratidão.